quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

O futuro precário do estado-nação (2)



A revolução industrial desenvolve novas estruturas políticas – a colonização extensiva a todo o planeta, o domínio diversificado das burguesias através do parlamentarismo ou de ditaduras, sempre com a vulgarizada utilização da guerra, da violência contra os trabalhadores e os povos colonizados. 

Do ponto de vista económico, o capitalismo liberal, produz os cartéis, o imperialismo e desenvolve fórmulas de fusão das funções económicas e políticas através do capitalismo de estado e do fascismo.

Os Ocidentais apresentam-se como os construtores da História, os únicos com capacidade para definir o futuro e, portanto, os portadores da universalidade.

B – O imperialismo e os seus limites

  8- Revolução Industrial
  9 – A construção do imperialismo
10 – O imperialismo maduro
11 - As duas Grandes Guerras e os alvores do keynesianismo
12 - O capitalismo de estado e o fascismo

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8- Revolução Industrial

Ao conjunto destas fundas alterações ao nível da produção (máquina de fiar, máquinas a vapor, e construção de canais, entre outras), do trabalho e da tecnologia designou-se Revolução Industrial e decorreu durante um século, a partir da segunda metade do século XVIII[1], época em que se inicia o primeiro ciclo desenhado por Kondratiev[2] para caraterizar o carrossel capitalista, com períodos de expansão e outros de contração da atividade económica, com marcados efeitos no bem-estar social e no âmbito da política e da conflitualidade militar.

Voltando a Inglaterra, a Revolução industrial e o salariato conduziam os trabalhadores para uma grande precariedade de vida e para uma forte consciência coletiva da sua condição. No norte do país decidiram eleger, fora do quadro legal, deputados para o Parlamento, que os representassem; e, quando em 1819, se reuniram 100000 trabalhadores em Manchester, o Estado, através da cavalaria, interveio para estabelecer o poder das classes possidentes no que se veio a chamar o massacre de Peterloo. 

Dos episódios atrás referidos resultam ensinamentos inesquecíveis e estruturais para enformar a relação entre o trabalho e o capital, entre a multidão e as instituições que representam os interesses do capital.

·     O poder do capitalismo marcava o seu caráter anti-social, como uma constante que se vem mantendo, passados quase dois séculos; isto é, sempre que os interesses do capital estão em jogo, as classes políticas mostram invariavelmente que são aqueles interesses que devem defender, doa a quem doer – trabalhadores, erário público, ambiente. 

·     O Estado não mais deixaria de ser o capitalista coletivo que hierarquiza, organiza e agrega politicamente a primazia estratégica dos interesses do capital; e como tal, o dedicado pastor e repressor da multidão. Peterloo pode significar também como é ilusório imaginar o Estado como um benfeitor da multidão; mesmo quando atualiza salários mínimos ou abre uma escola; apenas acarreta com aqueles custos para garantir a serena continuidade da maximização do lucro.

·     Finalmente, tornou-se clara a necessidade de uma luta autónoma dos trabalhadores face às instituições estatais, bem como de estruturas democráticas de decisão e de organização, paralelas às dos capitalistas e das classes políticas. Ficou claro que não é possível extinguir o capitalismo como evolução natural das suas próprias estruturas, como mais tarde se viria a admitir (Bernstein e Hilferding); e que a substituição de capitalistas privados por grandes instituições monopolistas (Hilferding) ou pelo próprio estado (Lenin, Trotsky, Bukharin, Varga e Stalin), não altera em nada a precariedade de vida dos desapossados. 

9 – A construção do imperialismo

A Inglaterra viria a mostrar-se, em meados do século XIX, como o estado-nação dominante. Internamente, o modelo inglês, conjugava um criativo poder legislativo da burguesia, em sintonia com um monarca sem pretensões de regresso ao absolutismo, ainda muito presente na Europa continental. Essa unidade materializava-se num bloco hegemónico bipartidarizado - que ainda hoje está presente no país – que desenvolvia o expansionismo colonial e o poder militar, sobretudo através do domínio dos mares, no seguimento de Trafalgar e Waterloo com a consequente derrota das tentativas francesas de chegar à hegemonia global. Essa hegemonia compreendia um Estado repressivo no capítulo da gestão da força de trabalho. 

Por seu turno, a entrada no capitalismo industrial gera uma luta autónoma dos trabalhadores, pela redução do tempo de trabalho e pelos direitos políticos; o aparecimento do Manifesto do Partido Comunista em 1848 traduz a sua autonomia como classe social, numa lógica internacionalista, com recusa do nacionalismo e com a defesa da apropriação da propriedade privada dos meios de produção. A primeira aplicação prática dessa autonomia viria a mostrar-se de modo efémero em 1871, com a Comuna de Paris, na qual, entre outras medidas, se aprovaram, a redução da jornada de trabalho, a igualdade entre os sexos, a abolição da pena de morte, a eleição dos juízes, a educação gratuita, laica e obrigatória, que a nacionalidade não seria ser tomada em conta, a abolição do exercito regular, as igrejas transformadas em locais de debate… Para derrubar a Comuna, o governo francês escorraçado para Versalhes pelos sublevados, fez um armistício com os prussianos que o haviam derrotado e os últimos libertaram militares franceses aprisionados, para se lançarem, em conjunto sobre os communards: no final da repressão contavam-se 80000 mortos, na maioria executados e, esse número não foi maior porque se teve medo de uma epidemia.

O modelo político inglês, pelo seu sucesso, inspirava as outras burguesias, interessadas na partilha dos mercados globais ou pretendendo maximizar o seu espaço no cenário europeu, sobretudo para os mosaicos plurinacionais otomano e austro-húngaro, visando o seu desmantelamento e vantagens comerciais. Para tal, surgiu o princípio da correspondência “cada nação com o seu estado” que se aplicou na Europa Oriental, primeiro à Grécia e depois à Sérvia, à Roménia e à Bulgária, ao mesmo tempo que favorecia a unificação italiana.

Esse período iniciado com as revoltas de 1845/8, na Europa, correspondeu a mudanças no sentido de monarquias liberais, com a evidente preponderância das respetivas burguesias; e tentativas de constituição de estados-nação ou de acesso a direitos elementares de cidadania e democracia na Hungria, na Itália, entre checos, polacos  e alemães, estes últimos, integrados numa vetusta Confederação Germânica. 

A nova vaga de inovações tecnológicas na segunda metade do século XIX (navios e comboios a vapor, aço, telégrafo, máquinas ferramentas e outras) promoveu grandes avanços na produtividade e exigiu maiores qualificações aos trabalhadores, bem como enormes volumes de capital, geradores da constituição de conglomerados e monopólios, que deram origem à segunda onda de Kondratiev.

A fase descendente daquela onda desenvolve-se, passado o impulso da construção de grandes infraestruturas ferroviárias ou dos canais e, na sequência, surge a depressão, com uma grande crise financeira, com quebra do investimento, redução do crédito concedido e baixa das taxas de juro, num período que vai de meados da década de 1870 até 1896. Daí resultará a criação de cartéis e a grande concentração de capital que irá favorecer o surgimento de novas atividades baseadas no petróleo na química e na metalurgia pesada com a energia do vapor a ultrapassar a hidráulica, com a substituição do ferro pelo aço e construção de redes de águas residuais. 

A terceira onda de Kondratiev arranca no final do século XIX como recuperação da crise financeira atrás referida. Entra-se no período áureo do imperialismo até à I Grande Guerra, à qual se segue um novo período depressivo que só termina, efetivamente com a desenfreada produção de armamento no contexto da II Grande Guerra; e, pesem embora as políticas keynesianas (avant la lettre) tomadas nos EUA e na Alemanha nazi, que abordaremos mais adiante.

Os cartéis industriais interligam-se com o capital financeiro, assumem uma relevância enorme, desmentindo as líricas ideias de Adam Smith sobre a concorrência perfeita. Essa concentração de capital para se reproduzir, exige a mobilização dos seus respetivos Estados e classes políticas na defesa dos seus interesses, contra o conjunto dos trabalhadores e no favorecimento nas disputas dos mercados exteriores. Surge um capitalismo muito concentrado, agressivo, com grupos nacionais rivais, em acerada concorrência pela partilha dos territórios politicamente frágeis ou “sem dono” e com os respetivos Estados atuando como mandatários daqueles cartéis, os seus campeões nacionais. Esta acerada luta tem poucos participantes no topo: na Europa, a Inglaterra, a França e a Alemanha que, emergindo como vencedora da guerra com a França, poucos anos antes, com enorme pujança industrial e grande população, aspirava a ter territórios coloniais em África e aceder aos seus recursos, para além dos EUA e de um surpreendente Japão que, em poucas décadas, passa de estruturas feudais para um imperialismo muito agressivo, em disputa com as potências ocidentais, na frágil China e, humilhando a Rússia com uma derrota militar em 1905. Seguem-se na hierarquia, na Europa, várias potências médias, como a Rússia, a Áustria-Hungria e o Império Otomano; e estados-nação de menor gabarito mas com possessões coloniais, como a Espanha, desapossada pelos EUA das suas possessões na América e no Oriente, na passagem do século e, Portugal. 

É neste quadro que se desenrola a Conferência de Berlim, para a partilha de África, como único espaço que faltava ocupar totalmente, pelas potências imperialistas, no planeta. Os elementos dominantes são as três grandes potências europeias. O Congo foi entregue a uma sociedade cujo acionista era o rei da Bélgica sob cujas ordens foi efetuado um verdadeiro genocídio entre os povos da região (2 a 15 milhões de pessoas, não se sabe bem) vinculados a trabalho forçado e à escravatura para enriquecimento do “civilizado” monarca; como as vítimas tinham a pele preta e pouco entendiam de finanças, nunca tiveram a notoriedade dos judeus assassinados pelos nazis. Poucos anos depois, os EUA apoderavam-se das colónias espanholas da América e do Pacífico, remetendo Espanha para um espaço colonial residual no Norte de África; e, na mesma época, travavam-se as guerras entre ingleses e boers, pelo domínio da África do Sul. No final dessa partilha só escaparam a Libéria, fora da tutela formal dos EUA desde 1847, a Líbia, subtraída aos otomanos pela Itália – retardatária na partilha colonial - e a Etiópia que também foi ocupada pela Itália de Mussolini mas, só em 1936.

O caso português é especial. Tinha territórios coloniais mas não tinha um desenvolvimento industrial que fomentasse a sua exploração intensiva; e isso, para as grandes potências era um desperdício, objeto de cobiça e conluios. O episódio do mapa cor-de-rosa mostrou um Portugal a querer dar um passo maior que a perna mas que conseguiu manter as suas colónias – alargadas para o interior – beneficiando das rivalidades das grandes potências

Do ponto de vista tecnológico, na terceira onda de Kondratiev incorporam-se os motores e as ferramentas elétricas, a eletrificação dos edifícios fabris ou domésticos, os motores de combustão e o automóvel, a rádio e a telefonia, a metalurgia do alumínio, a gestão dita científica e a produção em massa. Essas tecnologias e métodos de trabalho tiveram também impacto na qualificação do trabalho para o qual já não bastava apenas experiência mas, acima de tudo maior escolaridade dos trabalhadores. Isso veio a permitir uma maior capacidade organizativa dos trabalhadores, com reflexos no número e adesões aos sindicatos, bem como aos partidos alicerçados nas classes trabalhadores, mormente no SPD alemão que veio a degenerar marcadamente após a I Guerra até atingir, nos tempos atuais, um dedicado papel na aplicação da Agenda 2010, neoliberal e anti-social, levada a cabo por Gerhard Schroeder; e que Merkel herdou, agradecida.

No que respeita ao trabalho fabril, Taylor estudou e aplicou (1911) lógicas de especialização, de segmentação da produção para alcançar maior produtividade e, com isso, aumentar lucros; enquanto na Bethlehem Steel, onde trabalhava, a produtividade aumentava quatro vezes, os salários aumentaram de €1.15 para €1.85 por dia. Por um lado, essa segmentação retirava poder aos trabalhadores qualificados, aumentava o número dos não qualificados e criava a figura do supervisor, do burocrata que zelava pelo andamento da produção. Taylor, embora sabendo a importância estratégica do burocrata, do ponto de vista administrativo e da sua relevância como zelador dos interesses do capital, não disfarçou o seu desprezo pelo burocrata “tão estúpido e fleumático que a sua mente mais parecia a de um boi”.

O método permitia pagar melhor aos trabalhadores, menores jornadas de trabalho, maiores tempos de descanso e condições de trabalho que evitassem greves e perturbação da máquina produtora de capital. Pretendia harmonizar os interesses dos capitalistas com os dos trabalhadores, através de maior racionalização do processo produtivo, com a limitação das tarefas a actos repetitivos que tornassem os trabalhadores meras ferramentas, com dificuldades de compreensão do processo produtivo, infantilizados, estendendo e reforçando, por consequência, o papel das hierarquias dentro da empresa. Taylor, não teve dificuldades em dizer que o seu método “tornava qualquer tipo de problema laboral ou greve, impossíveis” o que, no entanto, não evitou fortes reações dos trabalhadores (greve da Renault em 1912 por exemplo) numa época de grande agitação laboral também nos EUA[3]

Quase em paralelo, Henry Ford (1913) - que desconhecia a existência de Taylor - gerou a produção em massa de um mesmo produto que o tornaria com um baixo preço relativo, sobretudo se associada à “racionalização” do trabalho defendida por Taylor; este propunha alterações ao nível da produção e Ford avançava com condições para o alargamento do mercado, do aumento do consumo[4] e, essa interação, naturalmente aumentava os lucros e acrescia o capital acumulado. Ford entendeu que dezenas de milhares dos trabalhadores das suas fábricas, beneficiários de melhores salários, se tornariam consumidores dos seus próprios produtos; uma realidade que no capitalismo neoliberal só acontece com através da infestação publicitária e do recurso a dívida, sempre em conjunto de austeridade. À produção em massa correspondia o consumo em massa, ao mesmo tempo que uma massa de homens era obrigada a ir para a guerra, em nome das respetivas pátrias. 

10 – O imperialismo maduro

Todo o período que se estende do último quartel do século XIX e, sobretudo, as duas guerras mundiais, até 1945 corresponde ao que Hilferding e depois Lenin designaram por imperialismo; o primeiro na acepção de capital financeiro e o segundo entendendo-o como a interpenetração entre os bancos e a indústria. Depois da revolução de 1917, Lenin focou-se na luta pela sobrevivência do novo regime, contra os exércitos das potências ocidentais no contexto da I Guerra, contra as intervenções externas posteriores apostadas na destruição do estado soviético, na jugulação da guerra civil e das revoltas das nações contidas na herança do estado czarista e ainda na anulação de qualquer oposição social e política ao partido bolchevique. E, por outro lado, a prevista revolução dos trabalhadores ocidentais não tendo sido generalizada, nem vitoriosa, conduziu ao isolamento do país.

O período seguinte, os anos 20 e 30 são anos de depressão, de desenvolvimento das taras nacionalistas e do fascismo, acompanhado por forte desconfiança e hostilidade face à URSS onde se passou a interpretar como imperialismo essa hostilidade das grandes potências. Mais tarde, já no pós-guerra, com a passagem a um mundo bipolar, com a URSS a constituir um desses polos, Baran e Sweezy estabelecem uma relação entre imperialismo e o caráter hegemónico dos EUA materializado pelas suas multinacionais. Por seu turno, Mandel refere que a produção e o consumo são comandados pelas multinacionais ligadas ao estado-nação de onde emanam, mesmo que mantenham sucursais em outros países. 

Uma das caraterísticas desse período entre as duas Grandes Guerras é que o capital se achava essencialmente com uma base nacional, com cada um dos países mais avançados a deter as suas grandes empresas, os seus conglomerados e grupos, o seu sistema financeiro, para além de moeda própria, fronteiras militarizadas e pontos de cobrança de direitos alfandegários, como instrumentos protetores das coutadas das tais grandes empresas nacionais.  Essa defesa da intrusão de bens vindos de fora confluía com o nacionalismo exacerbado e o fascismo, defensores da máxima auto-suficiência; e que marcavam a política na maioria dos países europeus. 

Essa grande concentração de capital anulava a ficção do capitalismo concorrencial, igualitário e gerava, pelo contrário, os chamados lucros de monopólio, as vantagens do controlo dos mercados, dos preços em geral, a capacidade de impor os preços do trabalho e de influenciar a classe política que, da sua parte, assumia como determinantes de atuação, os interesses das grandes empresas. Uma vez mais, firmava-se a unidade entre capitalistas e Estado no controlo e na definição da política nacional, face à concorrência externa, protagonizada por outros estados-nação onde o modelo era o mesmo; e isso era tanto mais facilitado porque se vinha reduzindo o peso político das nobrezas, dos grandes proprietários de terras, uma vez que a indústria era a atividade dominante, integrada com a finança nacional. 

A resistência ao modelo imperialista nos países mais avançados, vinha das classes trabalhadoras, cujo ponto alto no que respeita à defesa de alterações sistémicas se situou nos anos 20, antes e como resposta às derivas fascistas; e isso, porque o internacionalismo, a recusa das fidelidades pátrias e o primado pela unidade de gente de uma mesma condição como pobres e explorados, tinha sofrido um retrocesso quando trabalhadores procuravam matar outros trabalhadores nas trincheiras da guerra de 1914/18.

Entendemos por imperialismo, a fórmula geopolítica, agressiva e guerreira, centrada no papel dos estados-nação dominantes, nos quais se manifesta um entrosamento íntimo entre o respetivo aparelho de estado gerido por uma classe política, por um lado; e com cartéis de origem nacional, por outro, a que podemos designar por campeões nacionais. Dessa comunhão de âmbito nacional resultam conflitos e guerras frequentes contra a concorrência, entre os vários estados-nação, para a apropriação de recursos e mercados, em que não escapam povos dominados (colonizados ou não), que nada beneficiam dessas disputas e conflitos. Como explicaremos em texto seguinte, este modelo já não é o dominante nos tempos que correm.

11 - As duas Grandes Guerras e os alvores do keynesianismo

A evolução tecnológica, no princípio do século XX, é tão rápida que, no caso do armamento, este evoluiu consideravelmente na sua eficácia de fogo e morte, avolumando-se as desigualdades entre as grandes potências e as de menor gabarito, para não falar na sua superioridade esmagadora sobre os povos subjugados da periferia colonial, como se observou, por exemplo na guerra que os ingleses fizeram aos zulus. Os aristocráticos estados-maiores, na guerra 1914/18, não hesitaram em enviar centenas de milhar de soldados para verdadeiras carnificinas, replicando as táticas da guerra franco-prussiana… cerca de quarenta anos atrás, quando a tecnologia era muito menos mortífera. Na II Guerra, por exemplo, na invasão da Polónia, os panzer alemães chegaram a encontrar pela frente… soldados montados a cavalo. Diga-se, em homenagem à bravura dos generais que, nessa época, eles ficavam sempre na retaguarda, a ver a exposição dos soldados ao fogo do inimigo, a oferecerem o corpo na defesa da… pátria.
No capítulo da II Guerra a destruição e a mortandade foi muito superior sobretudo porque associada a práticas de genocídio étnico-cultural por parte dos nazis (vitimando judeus, ciganos, eslavos, homossexuais) ou político (atingindo anarquistas e comunistas); mas também no âmbito das práticas suicidas dos kamikaze japoneses ou das duas selváticas experiências de lançamento de bombas atómicas sobre populações civis, por parte dos EUA. Posteriormente, as situações de guerra mantiveram-se mais localizadas mas, no seu conjunto, ganharam duração, podendo dizer-se que os tiros constituem a “música” constante que ecoa no planeta desde a II Guerra. Terminada a era da colonização com as independências que se arrastaram até meados da década de 70, a apropriação de riquezas não passa pelo objetivo de conquista colonial de território mas pelo controlo dos seus recursos, por via empresarial, mantendo uma administração local formalmente soberana dominada por gangs militares ou civis, de sanguinários saqueadores.

O falhanço da revolução de 1848 teve, na Alemanha, consequências enormes. Na Inglaterra e em França, o poder foi-se consolidando em torno de uma burguesia que se fundiu com a aristocracia na primeira, saindo esta muito enfraquecida na sequência de 1789, em França a despeito da restauração monárquica terminada em Sedan. Na Alemanha, a sua pujante industrialização ocorreu em paralelo com o desenvolvimento de um bom sistema de ensino e com o pioneirismo de ter criado uma segurança social; não porque Bismarck fosse um humanista mas, porque eram precisos trabalhadores qualificados (o ensino técnico nasceu na Alemanha), que não faltassem amiudadas vezes por doença ou, se sentissem atraídos  pela reivindicação económica ou política. 

Essas caraterísticas de grande modernidade coexistiram com o poder de Estado entregue ao hegemonismo prussiano, tendo o rei da Prússia sido proclamado Kaiser (César, imperador) da Alemanha em Versalhes, por indicação de Bismarck, no seguimento da vitória na guerra franco-prussiana. O poder na Alemanha era dominado por uma aristocracia militarista, que vinha de longe, da Ordem Teutónica, protagonista de um longo combate de expulsão e submissão de eslavos e bálticos e que, nesse processo de hegemonia prussiana se sobrepôs às liberais cidades hanseáticas, como a uma vasta e diversificada lista de príncipes, condes… herdeiros tardios do Sacro Império Romano-Germânico de Carlos Magno. Esse ódio e desprezo contra os eslavos, tocava fundo na aristocracia alemã mas, também em intelectuais, como Marx; e foi aplicado de forma genocida no seguimento da invasão nazi da URSS, em 1941.

A derrota em 1918 - com a capitulação, a humilhação de Versalhes, a perda de territórios, população e a perda do império colonial - derrubou a monarquia e o poder da aristocracia, gerando anos de crise politica, de brutal inflação, desemprego e pobreza, que acabaram por levar Hitler ao poder, na base de um programa revanchista face aos ditames de Versalhes, de retorno a um Estado forte, com a adopção de uma teoria genocida de purificação da raça ariana e de ocupação de território onde viviam não-arianos, para além da perseguição a todos os que não se revissem no programa fascista. A aristocracia militar era muito sensível às humilhações de 1918, sentindo-se traída pela capitulação do kaiser; e, embora desprezasse um reles pintor (de fracos méritos, acrescente-se) como Hitler, sem pedigree nem esmerada educação, não hesitou em conluiar-se com ele, contra os ditames de Versalhes, cobrando apenas, do chanceler a chacina dos SA, a tropa privada do partido nazi, desprezada pelos orgulhosos e militaristas aristocratas. 

A importância do Estado, na tradição alemã, evidencia-se através de um programa, que viria a ser conceptualizado, pouco depois por Keynes, daí resultando que esse tipo de políticas económicas se viesse a designar por keynesianas, posteriormente. No caso da Alemanha contemplavam grandes fundos públicos para apoio das empresas, no investimento e na redução do enorme desemprego e ainda um programa de construção de infraestruturas públicas associado à produção de armamento; um programa com muitas semelhanças ao levado a cabo nos EUA, o New Deal. Esse programa tinha como peças fundamentais os konzern (conglomerados de empresas) tendo no topo o ministro von Schacht, um homem ligado à banca. Tudo isto estava associado a uma política de baixos salários e de militarização paternalista do trabalho, animada por propaganda nacionalista, racista e higienista, com largos traços derivados da experiência italiana com Mussolini, que também havia servido de modelo ao regime de Salazar. Essa ação do Estado estendia-se também ao lazer, ao desporto e à cultura, no âmbito de uma inequívoca preparação para a guerra. 

A politica económica com grande empenho do Estado na viabilização do capitalismo teve aspetos comuns nos casos da Alemanha e dos EUA, a começar pelas suas causas estruturais, de profundas depressões económicas; a Alemanha com o desemprego e a hiperinflação e os EUA na sequência do estoiro da bolsa em 1929.  As suas políticas laborais, porém eram distintas, uma vez que nos EUA se criou um salário mínimo e apoios a desempregados e idosos, com o governo a apoiar o papel dos sindicatos, como forma de os integrar numa lógica negocial e conservadora, face ao grande patronato. Porém, tanto na Alemanha como nos EUA, a melhoria da situação económica teve a verdadeira alavanca na produção de armamento; esta, se estancou na Alemanha com o final da guerra, continuou a ancorar a prosperidade americana posteriormente[5], através de conflitos com participação direta ou por procuração, quer com a criação de um mercado privilegiado - os países da Nato. 

12 - O capitalismo de estado e o fascismo

A cava da terceira onda de Kondratiev corresponde ao início da depressão que se consolidou no final da I Guerra e vai durar até que o esforço armamentista, reforçado, nos EUA e na Alemanha, com trabalhos de obras públicas, inverta a tendência. Daí resultaram o encerramento autárcico, a reação à revolução russa, a gestão do capital pelos partidos sociais-democratas, na vã esperança de uma transição natural e pacífica do capitalismo para o socialismo, fruto da concentração de meios nos grandes cartéis; o que, na realidade, veio antes a favorecer a formação de regimes fascistas. Estes, proliferaram nos países da periferia europeia, atrasados economicamente e sem regimes políticos pluralistas consolidados, como Portugal, Espanha, Grécia, Hungria, Roménia…Para além da Itália, um país muito marcado pela diferença entre Norte e Sul e da Alemanha, industrializada.

O fascismo corresponde precisamente a uma fusão entre os poderes do estado e os capitalistas, num plano muito mais elevado do que o correspondente aos poderes liberais típicos; o poder político apresenta-se marcado por um caráter messiânico que exige a adesão de todo o povo, uma disciplina militar no trabalho e um exacerbado fervor nacionalista, de afirmação das putativas grandezas da raça. O fascismo é coletivista, centrado num chefe carismático, em torno do qual toda a nação se deve unir, na procura de auto-suficiência, o que exige protecionismo e conquista de territórios e povos considerados menos dignos - os eslavos para os nazis, os etíopes para os italianos, os “incivilizados” povos do império português. A prossecução da auto-suficiência que gera a grandeza da pátria exige batalhas de produção, sacrifício e o esmagamento brutal de qualquer veleidade de desvio de rumo, protesto ou reivindicação; e daí a existência de polícias secretas com plenos e arbitrários poderes. A nação identifica-se com o regime e com o seu partido único, sem admitir diversidades partidárias. Se o patriotismo, ao crescer com a edificação do estado-nação se tornou um dos seus adereços constituintes, no fascismo torna-se obrigatório e sacrificial. 

Para Marx, como para Bakhunin – a despeito das suas divergências - a libertação dos trabalhadores face ao capitalismo seria efetuada pelos próprios, sem distinções de nacionalidade, com a apropriação coletiva dos meios de produção e a desaparição desse capitalista coletivo designado por Estado. Essa utopia incontornável, desconsiderada pelos reacionários vulgares e torpedeada pelo trotsko-estalinismo de todos os tempos, é bem evidenciada numa frase de António Negri numa entrevista recente - Rousseau dizia que o maior criminoso já nascido foi aquele que disse, antes de todos: “Isso é meu”. Mas houve um criminoso ainda maior, Rómulo, que disse: “Essa é minha fronteira”. São a mesma coisa, propriedade e fronteira.

Nas décadas de 1920/30 desenvolveu-se, na Rússia, como degenerescência da revolução de 1917, um capitalismo de estado, com todas as decisões de ordem política, económica, social e cultural a partirem da cúpula de um partido que se confundia com o próprio aparelho de estado; um perigo já enunciado por Bakhunin no âmbito das suas divergências face aos apoiantes de Marx. As várias esferas hierárquicas do partido constituíam (e constituem ainda hoje, na China ou em Cuba) uma elite, uma casta ou uma classe – os burocratas – que entende estar possuída de uma capacidade única de interpretação da realidade e dos problemas e, simultaneamente, do poder de definir os meios, o modo da sua aplicação e, de aferir os seus efeitos sobre a plebe. Institui-se assim, um poder constituinte a todo o momento, o poder de uma elite iluminada que se encarrega de menosprezar ou punir qualquer crítica ou alternativa proveniente da população ou emanada do próprio seio desse partido-estado. 

Uma diferença em relação às atuais classes políticas nas democracias de mercado é que nestas, há uma mais frequente rotação entre os gangs que as constituem e que ensaiam, periodicamente, espetáculos de eventual e cosmética mudança (eleições); nesses casos, as classes políticas dedicam-se à concertação dos interesses dos grupos privados nacionais, das multinacionais e do sistema financeiro, no exercício de um poder delegado por estes últimos. Em ambos os casos a população é obrigada a esforçar-se para colocar parte substantiva do produto do seu trabalho nas mãos da casta para que esta execute as medidas que melhor entender, no âmbito da sua insuperável e imputada sabedoria; seja essa casta um grupo de partidos ou um só, um partido-estado, com menor ou maior utilização de coerção musculada.

Segundo Lenin (Que fazer?) os trabalhadores não conseguem compreender o que vai além das questões sindicais, porque à época, as riquezas extraídas da exploração colonial desviariam os trabalhadores da revolução. E daí que fosse necessário um corpo de revolucionários, intelectualizados, uma vasta burocracia capaz de protagonizar uma ditadura do proletariado e executar a missão histórica do… proletariado que, no caso concreto da Rússia tinha sido duramente atingido pela I Guerra, pela guerra civil que se seguiu e pelos massacres de Kronstadt ou no seio da revolta makhnovistas. Em 1920, o mesmo Lenin (Imperialismo, Estado Supremo do Capitalismo) considera que os operários qualificados eram os verdadeiros agentes da burguesia no seio do movimento operário… numa época em que em toda a Europa estava em curso uma forte e violenta luta dos trabalhadores contra o capital. O que valeu, nessa lógica, foi… a instituição do partido, de uma casta de burocratas para substituir o conjunto dos trabalhadores, como inspirado sujeito revolucionário. Daí que tenham surgido, como figuras de transição para o comunismo, o capitalismo de estado, o socialismo, as transições para o socialismo, o socialismo de mercado (NEP), as economias de mercado socialista (modelos vietnamita ou laociano)… como formas de perpetuar a legitimar burocratas repressivos e corruptos. A única função útil dessas burocracias partidárias foi a de desacreditar a revolução junto dos trabalhadores, favorecendo o capitalismo, emissor de um “there is no alternative”, como hoje é bem visível.

O comunismo de guerra, com as dificuldades enormes de abastecimentos que gerara promoveu uma centralização militarizada, com a cooptação de oficiais do exército czarista, a dissolução dos comités de soldados e a instituição da sinistra figura dos comissários políticos; Trotsky definiu claramente essa centralização dizendo que “num Estado proletário a militarização é a auto-organização da classe operária”[6]. A estatização da indústria e, em 1932, da propriedade agrária, aumentou a atividade económica centrada nas decisões do partido-estado, muito para além daquelas funções típicas dos estados – funções militares, serviços secretos, polícia, campos de concentração, educação, saúde…; e foi aumentando a importância do Plano, em regra, só cumprido na propaganda, por exemplo, através da impossível capacidade de trabalho de Stakanov.

Na URSS onde o internacionalismo inicial foi esquecido em nome da defesa da “pátria socialista” nada mais se fez do que acompanhar o pendor nacionalista dos partidos sociais-democratas dos países mais a oeste, bem presente durante a I Guerra, com décadas de matanças e degredos ordenados por Lenin, Trotsky e Stalin; um nacionalismo também peça central nos regimes fascistas. Em 1935, a Internacional comunista adopta o princípio das frentes populares, subscrevendo a política de Stalin, de consideração da URSS como a herdeira do império russo[7]. Mais tarde, no seio dos partidos comunistas, o internacionalismo que ainda vinha fazendo parte da sua retórica foi substituído por “solidariedade internacional”, por proposta do PCI na Conferência de Berlim em 1976 e na sequência da invasão da Checoslováquia em 1968. A solidariedade dos povos e, mormente dos trabalhadores, ficava esquecida e elevava-se a relevância dos estados-nação ainda que com uma suserania paternalista com sede em Moscovo; tudo isso, dirigido e protagonizado pelas rígidas e sectárias hierarquias dos partidos comunistas.

Uma intencional confusão que vingou, desde os tempos iniciais, na escolástica trotsko-estalinista foi a consideração da nacionalização, da estatização, como forma natural e otimizada de libertação do capitalismo, ficando relegadas para o esquecimento, fórmulas de autogestão, de propriedade coletiva, comunitária, com ausência de hierarquias e imposições de um estado central e autoritário… forçosamente capitalista. Não havendo autonomia na base, toda a decisão repousa nas altas esferas de um estado muito centralizado na decisão, autoritário, protagonizado por uma burocracia omnipotente que se confunde em grande parte com o partido que utiliza a planificação como instrumento programático e, simultaneamente de controlo de toda a atividade económica. Essa intencional confusão está, ainda hoje, muito presente no que ainda existe de trotsko-estalinismo e contamina muita gente que, não o sendo, não se libertou da sua influência e toma a intervenção do Estado, em geral, como o elixir para o bem-estar e para a redução do papel do capitalismo nas sociedades atuais. No caso português, as nacionalizações de 1975, foram encaradas como um passo decisivo na marcha para o socialismo embora na realidade tenha sido a transmissão de prejuízos da descolonização, do sub-investimento do tempo do fascismo e ainda dos custos de capitalização ou reestruturação de empresas – pagos com o dinheiro dos impostos, com as intervenções do FMI, com grande perda de poder de compra; e que foram privatizadas gradualmente, a partir dos anos 80, na base de um acordo do governo Cavaco com Vítor Constâncio, então o chefe do PS, na oposição. Em resumo, um negócio entre as duas facções do partido-estado português, o PSD/PS ou o PS/PSD, de acordo com a conjuntura.

(continua)


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[1] Simbolicamente pode designar-se a primeira fábrica com tendo surgido em Cromford, na Inglaterra em 1771

[2] As ondas ou os ciclos de Kondratiev, são constituídas por periodos de expansão e períodos de depressão da atividade económica que se prendem com as limitações, contradições e desastres políticos e sociais inerentes ao capitalismo, bem como às mutações introduzidas pelas inovações tecnológicas. Assim, consideram-se quatro ciclos: 1790/1848, 1848/1890, 1890/1945, 1946/2008.


Por curiosidade, refira-se que Kondratiev baseou as suas conclusões em dados estatísticos e cálculos complexos e demorados. Porém, a divulgação de ciclos no capitalismo não cabia na tese vigente no princípio do século XX de que o capitalismo estava numa fase terminal (recorde-se o texto de Lenin “Imperialismo - Estado Supremo do Capitalismo” que ainda tem crentes… um século depois. Como os cálculos não coincidiam com a especulação política, um criminoso chamado Trotsky tratou de inventar números que contrariassem o estudo de Kondratiev e se adequassem às conveniências políticas; e, na sequência, o seu irmão gêmeo, Stalin acabaria por mandar assassinar Kondratiev, como herético do dogma “socialista”.

[3]  Lenin entendeu o taylorismo de um modo economicista. Defendeu que seria uma boa forma de aumentar a produtividade mas, menosprezou a violência da pressão exercida sobre os trabalhadores, relegados a tarefas atomizadas, dificultando assim a compreensão do processo produtivo que caberia apenas aos gestores… que viriam a constituir o grupo dominante no PCUS e na URSS, com os resultados que se conhecem do capitalismo de estado que colocaram no terreno. O massacre de Kronstadt, o esmagamento da rebelião de Makhno, a aplicação da NEP e do Código do Trabalho de 1922 desvaneceram qualquer lógica de controlo operário, tornando instrumentalizados pelo Estado, os sovietes, os comités de fábrica e os sindicatos...

[4] A produção em massa embarateceu o preço do célebre Ford T de 900 para 350 dólares, o que correspondia a cerca de 20% do rendimento anual de um trabalhador da própria Ford. Cabe perguntar quantos trabalhadores, hoje, podem comprar um automóvel novo … com 20% do seu rendimento anual.

[5]  Considera-se que a especialização dos EUA pesa na economia global através da produção de armamento, da tecnologia informática e o seu correlato de controlo da informação, da produção de cereais e da ideologia reacionária emanada de Hollywood

[6] Sobre a constituição do capitalismo de estado utilizamos elementos contidos na “Historia de la Unión Soviética” de Carlos Taibo.

[7]  As bases para esta mudança encontram-se em “O Marxismo e a Questão Nacional” de J. Stalin  (1934) que retoma as ideias de Otto Bauer no princípio do século e é objeto de um imediato desenvolvimento teórico por Henri Lefèbvre “O Nacionalismo Contra as Nações” (1937). Este modelo teórico, passados 80 anos continua vivo no PCP, com a sua “política patriótica de esquerda” ou no KKE, grego, que não esconde a sua admiração por Stalin.

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