segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Como o sistema financeiro captura a Humanidade através da dívida (2)



A dívida imputada pelo sistema financeiro e pela classe política não é nossa. É ilegítima porque dela nada resulta a favor do povo e aceitá-la é legalizar o roubo do nosso futuro.

Sumário
0 – Introdução
1 – A livre vontade das partes
2 - Uma ilegitimidade política originária
3 – Uma ilegitimidade quanto ao objetivo
   3.1 – Ocultação, a mãe de todas as burlas
   3.2 – Condições para a avaliação da legitimidade



0 - Introdução

Na primeira parte deste texto procurámos apontar algumas notas sobre a forma como o sistema financeiro aprisiona a Humanidade, utilizando a dívida direta e indireta, surgindo a última através do Estado e da intermediação das classes políticas.

Esse processo, com uma dimensão dantesca e com efeitos dolorosos na vida dos povos, exige uma solução à altura – a supressão do capitalismo, tal como desapareceram ou se tornaram marginais, a peste, a escravatura ou os vínculos feudais - devendo as decisões relativas às necessidades coletivas ser emanadas e estar sob permanente escrutínio das populações, com a abolição das aristocracias políticas.

Temos consciência da insuficiência ou inexistência de movimentações populares anticapitalistas. E essa ausência, não vem permitindo uma discussão séria e alargada da situação ou, que se avaliem as limitações internas do processo capitalista geradoras de profundas desigualdades, onde se segmentam áreas de tecnologias de ponta e elevadas produtividades e regiões de tecnologias baseadas em baixas qualificações, salários miseráveis, como miseráveis são as condições de vida e de trabalho.

Em todos os processos políticos complexos há sempre quem pretenda a suficiência da lógica dos pequenos passos – assimiláveis pelo sistema - sem colocar de frente a gravidade dos problemas e a necessária radicalidade das soluções que, poderá ser ou não ser exequível de imediato. É a lógica das reformas, do convencimento, ingénuo ou oportunista, de que a participação em instâncias estatais ou que a utilização das leis de um estado-nação podem reverter as tendências inerentes à pressão capitalista; que, para mais se exerce num plano global.

Assim, tentaremos apontar as limitações da abordagem descrita no parágrafo anterior e que, podendo causar alguns inconvenientes a instituições do sistema financeiro ou da classe política, não belisca particularmente o capital global, nem a arquitetura do sistema político “representativo”. Por outro lado, pode incutir a ideia – perigosa e falsa – junto da sociedade - de que essas abordagens e práticas podem fazer estremecer o poder capitalista ou a classe política na sua globalidade. 

A partir de um abordagem mais polarizada, aquém da análise sistémica do capitalismo nesta sua fase neoliberal e de predomínio financeiro, quando um Estado contrai uma dívida, há um encadeado de vetores a considerar para a sua não aceitação.

1 – A livre vontade das partes

No caso português, como dos outros países periféricos da Europa houve e há constrangimentos políticos externos e internos tais como: a pressão dos bancos nacionais para a concretização da intervenção pública, para a sua recapitalização ou transferência de malparados para entes estatais; a conivência dos governos; a desigual severidade (“a França é a França!”); e, as exigências da Comissão Europeia para a continuidade do endividamento, em nome de uma homogeneidade de políticas desajustada às enormes desigualdades que se conhecem no seio da UE e da Zona Euro, em particular. 

No que respeita à parte credora, aos bancos, às instituições globais que veiculam os interesses do sistema financeiro (FMI, Comissão Europeia, BCE ou Eurogrupo) não é de esperar a reclamação de constrangimentos exteriores para a constituição de dívida. Pelo contrário, essa afirmação terá todas as razões para partir da parte devedora, dos povos e dos seus presumidos representantes (governos, parlamentos, classes políticas).

Qualquer imposição externa sobre um povo, pela sua excepcionalidade, jamais poderá ser considerada como um acto de gestão corrente de qualquer governo. Pode admitir-se que numa dada conjuntura política, a maioria da classe política, governo e parlamento, recuse, perante os representantes do capital financeiro essas imposições; como se pode admitir, com maior probabilidade, que as decisões das instituições da democracia de mercado, em geral constituídas por governos e parlamentos coniventes, praticantes da corrupção, defensores do capitalismo e da predominância dos mercados, sejam as da aceitação dessa imposição ou de desvalorização dos seus efeitos sobre a multidão. 

Neste último contexto, há razões para que um povo se mencione em referendo sobre essas imposições de modo democrático (sem truques desvirtuadores da classe política) e decida soberanamente aceitar ou não o pagamento dos efeitos da mecânica disfuncional dos mercados financeiros. 

2 – Uma ilegitimidade política originária

A questão da legitimidade tem um caráter político e ético e prende-se com a existência de um ordenamento internacional e doméstico de extrema violência, no qual o bem-estar dos povos perde toda a dignidade, esmagado pela acumulação capitalista, no qual é dominante o sistema financeiro, com uma forma muito distinta da observada no princípio do século XX. Essa violência, cujo resultado é uma dívida cujo pagamento total jamais se alcança, não contempla, por inerência, o pagamento de um número determinado de prestações. Por um lado, a perpetuidade dos capitais drenados sobre os povos constitui como que um aluguer forçado, sem possibilidade de rescisão e pelo qual é exigido o pagamento de rendas. Por outro lado, atendendo a que a dívida é imposta através da violência estatal às populações, melhor seria designar a operação como captura ou conquista e as rendas como produto de saque ou espoliação. 

Desta violência resulta a ilegitimidade imanente a situações de roubo e, clamar ou admitir globalmente uma reestruturação é a nobilitação do ladrão, dos seus cúmplices e transformar um saque num contrato entre iguais.


Se um credor, no desprezo pelo mais elementar rigor na apreciação da situação económica e financeira do devedor, não cessa de lhe incutir a assunção de dívida, esse credor assume um comportamento doloso que, perante uma situação de insolvência do devedor, lhe retira direitos de reembolso. A resolução de 10/9/2015 da Assembleia Geral da ONU “insta os devedores e credores a “atuar de boa-fé e com ânimo de cooperação para alcançar consensos nos ajustes” de dívidas soberanas”.

Na perspetiva da referida Assembleia Geral da ONU, 19 economistas, entre os quais Picketty, Varoufakis e Galbraith, assinaram uma proposta de resolução visando a reestruturação da dívida, tomando essa reestruturação com uma amplitude conceptual muito para além do estreito entendimento assumido pela parte menos à direita da classe política portuguesa. Assim, o grupo de economistas formulou um conjunto de nove princípios – soberania, boa-fé, transparência, imparcialidade, tratamento equitativo, imunidade soberana, legitimidade, sustentabilidade e reestruturação geral.
Como em outras ocasiões relativas ao caso português – adopção da Constituição, intervenções do FMI no século XX, adesão à CEE, ao euro, a assinatura do Tratado de Lisboa … os governos assumem que a população lhes concede mandatos irrestritos e que se deve manter afastada da governação, dada a complexidade desta, só suscetível de ser encarada pelos privilegiados cérebros que enformam a classe política. Esse pressuposto desenha uma clivagem essencial entre a esmagadora maioria do povo e os gangs partidários e empresariais que rebaixam os salários e pensões e, por outro lado, os sobrecarregam com austeridade, cortes e uma asfixiante punção fiscal, tendo como pano de fundo que tudo é justificado com o pagamento da dívida pública e, sobretudo dos encargos com a mesma.

O actual regime político, de representação falseada, com mandatos irrevogáveis, está bem sintetizado no artº 10º da Constituição que institui os partidos políticos como organizadores e expressores da vontade popular, retirando à população a direta manifestação da sua vontade e das suas escolhas. À esmagadora maioria da população é dado o poder abstrato de votar; mas, se o fizer está condicionado às escolhas definidas pelos diretórios partidários, uma vez que à multidão é retirado - de facto - o direito de se candidatar ao exercício de funções políticas, diretamente e sem as condicionantes decorrentes do referido artº 10º. Onde isso acontece não há democracia; e onde não há democracia, não há legitimidade em quem exerce funções políticas, proveniente de uma minoria escolhida no seio de estruturas fechadas, hierárquicas e mafiosas. Daí que os compromissos no capítulo da dívida, entre outros, admitem toda a contestação por parte dos lesados, sobretudo daqueles que não participam nos circos eleitorais da democracia de mercado.

No caso da constituição de dívida pública em geral e pelo seu avolumar como agravante, trata-se, de uma política continuada, sistemática, repartida por exercícios anuais[1], que obriga e onera várias gerações futuras e que se consubstancia numa submissão canina aos desígnios do capital financeiro. Essa submissão constitui uma pesada canga cujo agravamento não cessa, mesmo que se concretizassem os desejos que as esquerdas do sistema político manifestam, de renegociações, reestruturações que não passam de formas mediáticas de apresentar serviço aos seus militantes e simpatizantes. Os gregos, pelas suas piores razões, anunciam com antecedência o que são e o que valem as reestruturações admitidas pelo sistema financeiro destinadas a países isolados, sem quaisquer veleidades de concertação, dadas as obediências a que estão vinculados e ao colete ideológico em que se situam as classes políticas.

Neste contexto, é justo que uma população recuse os compromissos danosos assumidos pelas parcelas da classe política que se revezem no controlo do pote.

3 – Uma ilegitimidade quanto ao objetivo

Há várias situações que se podem considerar neste ponto. 

Numa primeira situação o recurso ao endividamento pode ter um objetivo de justeza inatacável como um hospital mas o contrato que financia os trabalhos tanto pode ser feito dentro dos parâmetros normais e legais, como o mesmo pode estar marcado por condicionalismos e parâmetros leoninos e indiciadores de negócios corruptos entre os financiadores e os mais altos representantes do Estado.

Outra situação consiste em o objetivo nada ter a ver com a satisfação de necessidades coletivas, (por exemplo, o arrasar de um bairro de gente pobre, a deslocar para área periférica, para viabilizar a construção de um condomínio de luxo ou um campo de golfe) podendo nesse caso o financiamento estar ou não estar eivado por cláusulas fraudulentas que, a existirem, só acentuam a ilegitimidade da dívida constituída.

Para além das situações que englobam a constituição de dívida, outras há que, não a incluindo explicitamente, configuram gastos públicos desnecessários, politicamente condenáveis e ilegítimos. Ainda a dívida não constituía o elemento central do domínio capitalista em Portugal e já se evidenciavam objetivos ilegais na atuação do governo (Sócrates) com a conivência das direitas e com a distração das esquerdas par(a)lamentares. Referimo-nos à participação portuguesa na guerra no Afeganistão com um quadro claríssimo de inconstitucionalidades que, na ocasião (2010) divulgámos, perante o desinteresse da pastosa e domesticada imprensa. O mesmo se pode referir a propósito do desvio efetuado por Cavaco, durante o seu consulado de fundos da Segurança Social para a ação social. A ilegitimidade nas ações governamentais está presente sempre que não exista soberania popular, decisões conhecidas e validadas pelas comunidades ou susceptíveis de serem anuladas pelo povo; a ilegitimidade é uma caraterística imanente às atuais democracias de mercado.

3.1 – Ocultação, a mãe de todas as burlas

Voltemos à dívida. Quando uma pessoa ou uma empresa recorre a um crédito são-lhe pedidas pela instituição financeira, informações sobre a sua vida, património, rendimentos e (sublinhamos) as razões, os objetivos que justificam o pedido de empréstimo. Como é evidente, quando se trata de grandes empresas, grupos empresariais poderosos com vastos lotes de ações ou depósitos num banco, este torna-se mais ligeiro na análise da operação e daí os enormes volumes de crédito malparado (onde se destaca a fina flor do empresariato luso) que a UE decidiu imputar aos estados nacionais; isto é, à multidão dos que pagam impostos, forçados à recapitalização dos bancos falidos (o célebre bail-out). 

Em regra, nada disso acontece quanto à dívida pública. Os Estados através de um governo, assumem dívidas perante o sistema financeiro, sabendo ambas as partes que por detrás está como garante toda uma população. Para o sistema financeiro, o risco é mínimo, como se vem assistindo no caso dos países periféricos da Europa, uma vez que as respetivas classes políticas, as instituições europeias e o FMI saberão ser suficientemente impositivos para definir as medidas coercivas e de pilhagem das populações, para evitar o default. Isto é, essa população funciona como um fiador implícito do capital financeiro e simultaneamente como um pagador compulsivo do mesmo capital; tendo a classe política como vulgares agentes de execução, cobrando naturalmente os seus honorários, através de mordomias e corrupção.

Na classe política, no âmbito do qual se decide a contração do empréstimo, não se coloca a questão de perguntar ao pagador do reembolso e dos juros – a população - se está de acordo com o recurso ao crédito, com a aplicação do mesmo, as condições do empréstimo (taxas de juro, prazos de pagamento, prestações). A classe política através do instrumento Estado onera a população com uma dívida sem lhe perguntar a priori coisa alguma e sem informar, mesmo a posteriori, em que vai ser utilizado o dinheiro do empréstimo; saberá isentar-se de todas as responsabilidades – pessoais ou coletivas - e, na pior das hipóteses dentro da democracia de mercado, ocorrerá uma mudança de protagonistas, após uma maior ou menor peixeirada em campanha eleitoral.

Qualquer governo apenas se dará ao trabalho de informar o “mercado” de que vai lançar para venda, uns títulos de dívida, solicitando ao mesmo o seu interesse e taxas de juro simpáticas. Nesse mesmo dia, por exemplo, numa emissão de títulos de €1000 M cada um dos 10 M de residentes em Portugal vai assumir uma dívida média de € 100 com os respetivos juros, sem saber porquê, para quê e sem perder o apetite para o jantar ao ouvir a notícia do bom acolhimento do “mercado” à emissão de títulos.

Nos últimos anos, a troika forneceu € 12000 M ao Estado português, com aplicação consignada ao resgate de bancos em dificuldades[2], sendo esdrúxula a razão para que uma população inteira se visse envolvida nessa intermediação, com um comprometimento público e de alto risco, de todo estranho a um ordenamento jurídico que santifica a empresa privada e o empreendorismo, segundo o qual caberá (e bem) aos seus sócios ou acionistas todas as responsabilidades. 

O mau “empreendorismo” dos pobres é sancionado com a falência ou a ruina e, dirão os avatares neoliberais, que faltou competitividade, que o modelo de negócio não foi bem elaborado, não se sabendo em cada caso se o prestigiado (??) IEFP encontrará empregabilidade para o falido. Se é o empreendorismo dos ricos que falha, o Estado assume dívida externa para a sua recapitalização e remete os seus custos para os pobres. É assim o modelo de negócio neoliberal, cumprido fielmente pela ala da classe política que estiver de serviço, com a supervisão de draghis, dijsselbloems ou constâncios.

No artigo 102º a Proposta de Lei do OE2017 estatui-se: “1 - Para fazer face às necessidades de financiamento decorrentes da execução do Orçamento do Estado, incluindo os serviços e fundos dotados de autonomia administrativa e financeira, o Governo fica autorizado a aumentar o endividamento líquido global direto, até ao montante máximo de € 9 350 000 000,00.”  E mais adiante, no artigo 106º informa-se que o Governo poderá recorrer à emissão de dívida flutuante até um limite máximo de € 20000 M; no caso desta dívida, sabe-se que a sua aplicação é de curto prazo, para efeitos de estabilização dos saldos em tesouraria. 

No próprio OE2017 aprovado, Quadro III.4.V.3.2. refere-se que as necessidades líquidas de financiamento serão de € 9609 M, contra € 13140 M calculados para 2016 o que, a concretizar-se, será uma situação menos má. Por necessidades líquidas, entende-se que na porta giratória da dívida, haverá mais entradas do que saídas, mais aumentos do que reduções, embora se saiba que o edifício já está a abarrotar.

Esta previsão, que se repete ano após ano, sempre com quantitativos pouco tranquilizadores, é feita sem que se saiba qual a aplicação concreta do produto dos financiamentos, como já se referiu. Os gangs governamentais que gerem o Estado e o endividamento público sentem-se confortáveis por detrás do seu poder coercivo sobre a população e dispensam-se de dar explicações. Por outro lado, a população, dominada ideologicamente pela naturalidade da sua submissão ao poder estatal e aos governos, aceita o pagamento futuro de uma fatura que não revela o bem ou serviço prestado mas, apenas o montante. A mole é mesmo mole e paga, paga, paga...

Para agravar a situação, a prestação genérica de serviços por parte do Estado não revela, em geral, benefícios que possam ser relacionados com o recurso ao “mercado” de capitais; antes pelo contrário, é o recurso sistemático à divida e o pagamento de juros que cria o caudal de falências, desemprego, austeridade, cortes, emigração, degradação dos serviços públicos essenciais.

3.2 – Condições para a avaliação da legitimidade

Em Espanha, Zapatero e Rajoy, em 2011, decidiram firmar na Constituição uma alteração do artº 135º que atribui prioridade ao pagamento de juros do endividamento e, com o que sobrar… logo se verá quanto à qualidade e quantidade dos serviços públicos. Claramente se observa a hierarquia criada; centenas de milhar de pessoas, assoladas pelo desemprego eram despejadas das suas casas, com a polícia a ajudá-las a sair mais depressa para não prejudicarem os interesses imobiliários e do sistema financeiro.

Em Espanha, a classe política viu-se obrigada a inscrever na lei essa prioridade, perante a movimentação popular registada em 2011/13 ainda que o seu equivalente, em Portugal esteja, de facto a ser aplicado, sem necessidade de alterações constitucionais, uma vez que a mansidão, bem presente entre os portugueses, foi acentuada, na mesma época, pelos provocadores que brilharam no jugular da criação de movimentação social e política autónoma que poderiam colocar em causa o bem-estar dos mandarins da “esquerda”.

Para parte substancial da dívida, a ausência de ligação direta entre aquela e a aplicação concreta dos fundos dificulta uma contestação da sua legitimidade, assente na apresentação de conteúdos técnicos. Em certos casos, porém, há dívidas consignadas a investimentos de utilidade duvidosa, como os estádios de futebol, no princípio do século, ou os escandalosos compromissos assumidos no caso das parcerias público-privadas que nitidamente favorecem grupos económicos com forte influência nos partidos com “vocação” governamental e, muito provavelmente com atuações criminosas de permeio. Neste contexto de ligação direta e sabendo-se o tradicional secretismo que rodeia a gestão estatal é muito duvidoso que os governos forneçam os dados para a avaliação de uma presumível ilegitimidade. Mesmo admitindo que esses elementos são fornecidos, sem truncagens, que garantias existem de que os governos aceitam o veredito popular, a sua própria condenação, procedendo à anulação de contratos e condenações dos responsáveis por fraude? O recurso a auditorias externas sabe-se, visa essencialmente replicar as conveniências de quem as paga; e, se envolverem ações judiciais, também é conhecida a habitual lentidão das instâncias judiciárias, sobretudo quando há crimes de colarinho branco. Finalmente, a classe política aceitará que comissões populares de auditoria penetrem extensiva e intensivamente no coração do Estado, na intimidade da produção de corrupção?

O Estado, como ele se nos apresenta é um bunker; mas, é um salão de festas para capitalistas e mandarins. Admitir auditorias extensivas ao aparelho de estado de um país só é possível no âmbito de uma contestação alargada de um regime político; de crítica e afastamento da classe política, de mudança profunda da organização política, com avaliação de responsabilidades na constituição de dívida, como elemento de integração na trama do capital financeiro, como se observou na primeira parte deste texto. E isto, sem esquecer a enorme relevância dos trabalhadores da função pública para a execução de tão gigantesca tarefa.

Admitir auditorias alargadas, globais, sem as premissas acima referidas é apontar ingenuamente o impossível ou forma de desviar energias contestatárias para objetivos laterais. O mesmo sucede relativamente a quantos falam em reestruturações da dívida pública, no seio de renegociações onde se admite, ilusoriamente haver uma igualdade entre as partes, quando uma delas é um pequeno ou médio país, isolado; e a outra é toda a ordem capitalista orquestrada pelo capital financeiro[3]. A solução terá de partir de um conjunto de países suficientemente vasto e determinados para que parte substancial da dívida seja tomada como nula e portanto apagada nos balanços das instituições do sistema financeiro, a partir de um profundo saneamento das finanças globais.

Se os aparelhos centrais dos estados são particularmente avaros no capítulo da transparência, as instituições autonómicas, regionais ou autárquicas não deixam de o ser, ainda que nestes casos, particularmente nas últimas, os valores das dívidas em causa sejam relativamente modestos. Vejam-se as respetivas relevâncias para Espanha e Portugal em milhões de euros e percentagens do PIB.


Estatal
Autonómica/
Regional
Municipal
Total
(mar/2016)
810.1
( 74.4%)
264.2
(24.3%)
35.1
(3.2%)
1109.4
(100.5%)
Portugal  (out/2016)        
238.7
(132.9%)
6.1 (2015)
(3.4%)
4.5 (2015)
(2.5%)
249.3
(137.8%)

Em Portugal, mesmo nas autarquias ditas de esquerda a opacidade também domina, beneficiando da inexistência de grupos locais que exijam informação e mobilizem a população contra gastos suspeitos ou faraónicos; a ocultação é regra de ouro nas oligarquias partidárias nacionais, regionais ou autárquicas. As próprias assembleias municipais, mesmo quando não são circunscritas aos eleitos, são pouco participadas pela população, sabedora do fosso existente entre as pessoas comuns e os mandarins; com alguma diferença apenas naquelas onde a população tem um volume diminuto e existem frequentes relações, familiares, pessoais ou de vizinhança.

No caso do estado espanhol o acesso a elementos quanto à dívida estatal e autonómica continua a ser bloqueada à PACD (Plataforma para uma Auditoria Cidadã à Dívida). Porém, como fruto das últimas eleições, vários alcaldes e alcaldesas assumiram funções e isso abriu portas, contas e arquivos de autarquias, efetuando-se ou estando em curso, avaliações de casos de contratos leoninos e situações de ilegitimidade. Esse conjunto de uns 600 autarcas subscreveu um Manifesto de Oviedo para constituírem uma força unida de combate contra o já referido artº 135º da Constituição, contra a lei Montoro de asfixia financeira dirigida às autarquias e comunidades autónomas, pela devolução dos juros abusivos cobrados pelos bancos, pela anulação das dívidas ilegítimas.

Apesar do seu número limitado no contexto do total das administrações locais e autonómicas do estado espanhol, a iniciativa do Manifesto de Oviedo pode constituir um exemplo mediático, uma vez que muitos foram eleitos nas principais cidades. No caso português, é notória a ausência de qualquer autarca que publicamente defenda uma posição semelhante e, menos ainda, que uma autarquia assuma na prática, uma avaliação das irregularidades e ilegitimidades; mesmo naquelas onde domina a ala esquerda do regime cleptocrático luso. Seria de espantar que os oligarcas revelassem o produto dos seus actos corruptos ou da sua gestão descuidada.

Na Catalunha, a CUP-Candidatura de Unidad Popular, que tem 10 lugares no Parlamento catalão e se tornou um elemento chave para a governação da Generalitat, tem uma posição de radical repúdio em relação à dívida: «Não pagamos a vossa dívida». No seu programa, propõe a suspensão «imediata do pagamento da dívida e que se decrete o não pagamento definitivo da usura legalizada para acudir às necessidades das classes populares». A CUP não se opõe à realização de auditorias populares e declara nulo e sem efeito qualquer pagamento de dívida ilegítima gerada a favor de fundos de investimento e bancos internacionais. Como facilmente se denota, este realismo libertador da canga da dívida está nos antípodas da esquerda parlamentar portuguesa que se contenta em renegociar, em se encontrar com representantes do sistema financeiro e depois logo se vê; no entanto, tem toda a plausibilidade que qualquer efeito daí resultante será sempre muito limitado e que só uma avaliação a nível europeu do problema da dívida, com uma anulação substancial a expensas do sistema financeiro poderá ter um significado real na vida dos povos da periferia Sul da Europa.
                                                                                                                                          (continua)
Este e outros textos em:


[1]  IGCP - Programa de Financiamento da República Portuguesa – necessidades líquidas de financiamento (dívida fundada, em euros): 2011 – 20000 M, 2012 – 17400 M, 2013 – 11500 M, 2014 – 11800 M, 2015 – 11000 M, 2016 – 7000 M. Por seu turno, o Quadro III.4.V.3.2. do OE2017 refere essas necessidades em 2015 – 11845 M, 2016 – 13140 M e 2017 9609 M

[2] Segundo o Tribunal de Contas, para o período 2008/15 as despesas de capital no apoio ao sistema financeiro chegaram a € 20083.4 M em 2012, sendo no final do período o património registado de € 15458.6 M. A capitalização da CGD espera à esquina.

[3] A propósito dos swaps contratados entre empresas públicas portuguesas e o banco Santander, duas instâncias londrinas deram razão ao banco podendo o Estado português ter de vir a pagar € 1800 M. Naturalmente o Santander terá usado um procedimento muito bem esquematizado, construído por especialistas de alto gabarito e que constituiu armadilha para a outra parte, sem capacidade técnica à altura mas, em contrapartida, muita leviandade,

7 comentários:

  1. Quem pediu emprestado não é criança nem inimputável foram adultos responsáveis e com responsabilidades delegada!
    Pediu-se emprestado há que pagar!
    Se todos os políticos com responsabilidades na estrutura do Estado aceitarem prescindir de 50% dos seus salários para ajudar a pagar a dívida eu prescindo de 50% da minha reforma!

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    1. Meu caro, as relações com o sistema financeiro não se comparam com as que relacionam pessoas. Se eu lhe dever o valor de um empréstimo que me tiver feito, é meu dever pagar-lhe. Se isso tivesse acontecido não poderia usar o dinheiro enquanto eu não lhe pagasse; com os bancos não é assim e eles multiplicam o dinheiro lá depositado de modo desastrado e sem limites. Daí as crises financeiras que os governos depois descarregam em cima da população que não goza de benefícios fiscais e apoios ao investimento como os empresarios que financiam os partidos do governo. Creio ter sido bem explicado que através da dívida - pessoal ou pública - constituida junto da banca há um mecanismo de escravização das populações

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  2. Quando escreve "...esquerda parlamentar portuguesa que se contenta em renegociar, em se encontrar com representantes do sistema financeiro e depois logo se vê..." em minha opinião deveria mencionar o Partido Socialista e não esquerda, porque, o PS é tudo hoje, menos um partido de esquerda, apesar do acordo em sede parlamentar. A Esquerda Portuguesa, (BE e PCP e Verdes) não se contentam em negociar, nem nunca se sentaram à mesa com representantes do sistema financeiro.

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    1. Consideramos o PS, como o PSD um género de partido-estado com duas alas para fingir alternância; esquerda parlamentar será pois BE/PCP/Verdes/PAN. Claro que nunca houve negociações entre a esquerda parlamentar com o sistema financeiro a propósito da dívida. A questão da dívida é política e não há solução nacional tendo do outro lado o capital financeiro. Por outro lado, a esquerda parlamentar não coloca a questão da legitimidade de uma dívida que não trouxe qualquer benefício em bem-estar para a população; antes pelo contrário. Admitem que com alargamentos de prazos e reduções de juros a coisa se resolve e isso não é verdade. Nem o capital financeiro tomará uma iniciativa unilateral com Portugal, nem as benesses concedidas trariam um substancial alívio como já demonstrámos, em 2013 e no final do ano passado. De memória, para ser breve, passar de uma capitação de dívida de 800 euros para uma de 746 não resolve coisa alguma. Esperar um elevado crescimento económico não é crível pois os aumentos de produtividade são absorvidos pelo sistema financeiro que não financia nem empresas nem pessoas; mas financia os estados dada a benevolência dos governos de turno e a mansidão dos povos que aceitam essa dívida. Aliás se a dívida imposta pelo sistema financeiro é ilegítima, falar de renegociação/reestruturação é aceitar a legitimidade da dívida. Para terminar, uma saída do euro e da UE de um país como Portugal, muito exposto ao comércio externo, sem capitalistas de gabarito excepto na fuga de capitais seria um desastre económico e político. A inflação daí resultante, por exemplo, num modelo baseado em baixos salários conduziria a repressão para que eles não subissem e a haver resistência a fascização virava a esquina

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  3. Amigo Vitor, subscrevo inteiramente quase tudo o que aqui é dito, mas precisamente por todas as razões apontadas e por outras não referidas, parece-me essencial mudar o discurso e parar de chamar dívida àquilo que de facto o não é. Continuar a chamar dívida é pactuar com o discurso oficial que diz ser preciso "honrar os compromissos", pobrezinhos mas honrados. Não existe honra nenhuma em pagar esta extorsão violenta. Chamemos-lhe então TRIBUTO, EXTORSÃO, ASSALTO, o que se quiser, mas dívida não, com certeza.
    Abraço

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    1. Tens toda a razão. Já outra pessoa me chamou a atenção para os perigos dessa abordagem. De facto, o que pretendi foi usar os critérios usados pela "esquerda" que legitima e atribui dignidade à dívida, querendo apenas um bónus, com uma reestruturação. Esse uso foi essencialmente, mostrar as limitações dessa abordagem, as suas contradições internas a partir do argumentário dessa dita "esquerda"; evidenciar as limitações desse discurso colaboracionista e branqueador da realidade e dos objetivos centrais do capitalismo. Abraço

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  4. O sistema é tão bem articulado, tão bem estruturado e fundado nos critérios da exploração que impõe comportamento às pessoas e convence as mesmas que elas são as únicas responsáveis pelo endividamento ou pelo erro, se assim quiser. Acontece que o endividamento não é uma via de mão única, apenas com credor e devedor, sendo um que oferece e o outro, "por irresponsabilidade", aceita. O endividamento ocorre motivado pelas necessidades de consumo, sendo muitas delas criadas pelo próprio sistema. Inimaginável vivermos consumindo apenas o considerado essencial ou básico, focado na moradia, na alimentação e na vestimenta. Muito do que consumimos, antes não essencial, hoje se tornou indispensável, o que acaba provocando o endividamento. E o endividamento passa a ser essencial para manter o sistema em funcionamento e acumular a riqueza. Inimaginável também, um sistema que é movido a dinheiro não produzir endividamento. Então, para que servem e o que produzem os juros? Por outro lado, há argumentos querendo nos convencer que endividar-se é opcional, uma questão de “educação financeira” financeira, como se nossa vontade tivesse muita importância num mundo que inventa e reinventa necessidades. Um exemplo cá, outro lá, não diz nada num modelo que já vive seu pleno ocaso.

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